13 de fevereiro de 2007

Todo o Mundo e Ninguém

Um rico mercador, chamado "Todo o Mundo" e um homem pobre cujo nome é "Ninguém", encontram-se e põem-se a conversar sobre o que desejam neste mundo. Em torno desta conversa, dois demónios (Belzebu e Dinato) tecem comentários.

Entra Todo o Mundo e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; logo após, Ninguém e diz:

Ninguém: Que andas tu i buscando?
Todo-o-mundo: Mil cousas ando a buscar: delas não posso achar, porém ando porfiando, por quão bom é perfiar.
Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
Todo-o-mundo: Eu hei nome Todo-o-Mundo, e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro e sempre nisto me fundo.
Ninguém: Eu hei nome Ninguém, e busco a consciência.

[Belzebu para Dinato]

Berzebu: Esta é boa experiência! Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu: Que Ninguém busca consciência e Todo-o-Mundo dinheiro.

[Ninguém para Todo-o-mundo]

Ninguém: E agora, que buscas lá?
Todo-o-Mundo: Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deos mande que tope co'ela já.

[Belzebu para Dinato]

Belzebu: Outra adição nos acude: escreve logo i a fundo, que busca honra Todo-o-Mundo, e Ninguém busca virtude.

Ninguém: Buscas outro mor bem qu´esse?
Todo-o-Mundo: Busco mais quem me louvasse tudo quanto eu fezesse.
Ninguém: E eu quem me reprendesse em cada cousa que errasse.

[Belzebu para Dinato]

Belzebu: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Belzebu: Que quer em extremo grado Todo-o-Mundo ser louvado, e Ninguém ser reprendido.

[Ninguém para Todo-o-Mundo]

Ninguém: Buscas mais, amigo meu?
Todo-o-Mundo: Busco a vida e quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é, a morte conheço eu.

[Belzebu para Dinato]

Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito garrida: Todo-o-Mundo busca a vida, e Ninguém conhece a morte.

[Todo-o-mundo para Ninguém]

Todo-o-Mundo: E mais queria o Paraíso, sem mo ninguém estrovar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar quanto devo pera isso.

[Belzebu para Dinato]

Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve que Todo-o-Mundo quer Paraíso, e Ninguém paga o que deve.

[Todo-o-Mundo para Ninguém]

Todo-o-Mundo: Folgo muito d´enganar, e mentir naceo comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo, sem nunca me desviar.

[Belzebu para Dinato]

Belzebu: Ora escreve lá, compadre, não sejas tu preguiçoso!
Dinato: Quê?
Belzebu: Que Todo-o-Mundo é mentiroso, e Ninguém diz a verdade.

[Ninguém para Todo-o-Mundo]

Ninguém: Que mais buscas?
Todo-o-Mundo: Lisonjar.
Ninguém: Eu som todo desengano.

[Belzebu para Dinato]

Belzebu: Escreve, ande lá mano!
Dinato: Que me mandas assentar?
Belzebu: Põe aí mui declarado, não te fique no tinteiro: Todo-o-Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.


[Excerto do AUTO DA LUSITÂNIA de Gil Vicente (1532)]

11 de fevereiro de 2007

Tudo Pequeno

«Supreende-me e irrita-me -pois pertenço a essa espécia o humilde contentamento dos homens. Falam a todo o momento de grandezas - the biggest in the world - e a seguir descobre-se que lhes parece imensa qualquer modesta pequenez. Falta, em absoluto, a todos, o senso do gigantesco. Falam como Sansões e agem como o Pequeno Polegar.

Uma estátua da altura de sessenta metros parece, a seus olhos, um colosso; uma casa de cento e cinquenta, um desafio ao céu; uma torre de trezentos, um portento único; uma ponte da extensão de mil metros, uma vitória do génio humano. Uma cidade inde vivem seis ou sete milhões de homens - isto é, cem vezes mais deserta do que alguns formigueiros - faz o efeito de uma metrópole imensa; e uma população de cem milhões parece interminável. Nunca vi pobres tão extasiados diante das obras de empresários tão mesquinhos. Quando me vi pela primeira vez ao pé da Torre Eifel, não pude deixar de rir: Aquela desilegante gaiola de ferro, que parece um brinquedo de engenheiros, abandonado perto de um regato, era, realmente, a construção mais alta da Terra? É caso para ter vergonha de ser homem e de ter nascido neste século.

S. Pedro de Roma é, ao que dizem, a maior igreja do Mundo e tem, pelo menos, como vestíbulo, uma praça que podia ser o modelo reduzido de um dos meus sonhos. Mas quando se entra na nave fica-se desiludido. Isso é tudo? Em poucos passos, encontramo-nos sob a cúpula: não quero dizer que seja feia, uma vez que os especialistas a admiram, mas as dimensões são incrivelmente miseráveis. Se o Imperador do Mundo construísse um palácio real digno dele, um a cúpula como a de Miguel Ângelo poderia, quanto muito, ser a abóbada de um átrio de serviço. Quanto ao coliseu, seria, imagino, um pequeno pátio de passagem para as cozinhas.

É possível que os babilónios e os egípcios tivessem, um pouco mais do que nós, a fantasia do grandioso, embora possamos desconfiar das ruínas, que nos podem iludir. Mas os modernos - que possuem meios e mecanismos muito superiores aos antigos - deviam fazer muito mais e não escancarar a boca a vista das intenções mesqueinhas dos nossos arquitectos micrómanos.

Nenhum tem uma imaginação digna da nossa condição de monarcas do planeta. Ter-se-ia, por exemplo, de recomeçar a construção da Torre de Babel, abandonada por uma vil superstição, há milhares de anos. Um torreão de mil metros, que ultrapasse a zona das nuvens e permita contemplar inteiro todo o país a seus pés, não seria empresa impossível para os nossos construtores.

Contentam-se em admirar os navios de duzentos e trezentos metros de comprimento, que transportam, lentamente, através dos mares, alguns milhares de viventes. Mas o navio, em relação à nossa época, devia ser uma ilha autêntica, com jardins plantados em terra verdadeira, com ruas e palácios e destinada, não a andar daqui para alí, de um Continente para outro, mas a tornar possível a carreira regular entre todos os Continentes. Os paquetes de hoje nada mais são do que bacaças a vapor, que farão, dentro de um século, o mesmo efeito que nos fazem as diligências de há cem anos.

Por ora só as palsavras são de titãs, mas as nossas obras são de formigas e toupeira. Até as formigas nos podem dar lições de grandez. O Homem Moderno, apesar da sua jactância, pensa como Gulliver e não se percebe de que vive ao nível de Liliput.»

Nova Iorque, 24 de Janeiro

GOG

de Giovani Papini

1 de fevereiro de 2007