[António Feio, 1954 - 2010]
«É mais difícil descrever a realidade do que a ficção. A ficção tem que fazer sentido»
30 de julho de 2010
15 de julho de 2010
De consciência tranquila [O negócio PT/TVI]
Aceitei este encargo, que sabia ser bem espinhoso, porque tal me pediu o Presidente do meu Grupo Parlamentar, ao tempo o Senhor Deputado José Pedro Aguiar Branco — e eu era então um dos mais convictos e entusiásticos apoiantes da sua candidatura à liderança nacional do PSD.
Desde o início deixei claro que exerceria a função com total rigor e independência e por isso me abstive em todas as votações da CPI, incluindo a do relatório final.
Por consenso unânime foram adoptadas desde o início regras e procedimentos, nomeadamente quanto a limites dos tempos de intervenção, que muito ajudaram a conduzir com eficácia os trabalhos da CPI.
Repito aqui formalmente o meu louvor e agradecimento às Senhoras Deputadas e aos Senhores Deputados que fizeram parte da CPI, tanto efectivos como suplentes, em especial os membros da Mesa, o Relator da Comissão e os que tiveram o encargo de Coordenadores de Grupo, pelo seu exemplar empenhamento no cumprimento do mandato recebido. O mesmo digo dos funcionários do Parlamento destacados para apoiar a actividade da CPI, tal como dos representantes dos órgãos de comunicação social, que asseguraram a divulgação dos nossos trabalhos à opinião pública.
Realizou a CPI, dentro da estreita margem de tempo fixada para o seu mandato, prolongada com calculada parcimónia, um número apreciável de diligências instrutórias, incluindo a inquirição de cerca de duas dezenas de pessoas consideradas como testemunhas válidas dos factos em análise.
Com uma única excepção, que deu origem ao procedimento legalmente previsto, todas as entidades solicitadas se prestaram a colaborar com a CPI, cumprindo assim o seu respectivo dever cívico.
A CPI, por iniciativa potestativa de alguns dos seus membros, requereu às entidades judiciais competentes peças de processos criminais em curso, no entendimento, de uma parte e outra partilhado, que o segredo de justiça, nos termos da lei aplicável, não é oponível às comissões parlamentares de inquérito.
Entendeu, porém, a CPI, por iniciativa minha, reforçada por deliberação da Mesa, obtida por maioria, com uma abstenção — deliberação essa recorrível, nos termos gerais do nosso Regimento, mas de que ninguém recorreu, o que deve ser entendido como aceitação, segundo os princípios gerais de direito — não utilizar directamente o conteúdo dos resumos de escutas telefónicas incluídos na documentação recebida do Tribunal de Comarca do Baixo Vouga, nem nos trabalhos da CPI nem no seu relatório final.
Acerca desta matéria gerou-se alguma confusão, que tentei esclarecer, nem sempre com sucesso. A ninguém foi proibido a acesso às famosas escutas, mas apenas a utilização directa do seu conteúdo pela CPI. Expressamente foi dito que o conhecimento das mesmas poderia mesmo sugerir novas diligências instrutórias…
O que me pareceu — e à CPI — de todo inaceitável foi a utilização de escutas num procedimento parlamentar, que não tem, obviamente, a natureza de investigação criminal.
Na verdade, a Constituição declara invioláveis “o domicílio e o sigilo da correspondência e outros meios de comunicação” e proíbe expressamente “toda a ingerência das entidades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal” (Artigo 34º, 1 e 4).
Por outro lado, a Constituição considera nulas todas as provas obtidas mediante “abusiva intromissão na correspondência ou nas telecomunicações”, aplicando-lhes o mesmo regime que determina para as provas obtidas mediante “tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa” (artigo 32º, 8).
Aduzem alguns o argumento seguinte: dispondo a Constituição que as CPIs “gozam de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” (Artigo 178º, 5), está-lhes facultado o uso de escutas telefónicas.
A questão, porém, a meu ver, não é orgânica mas sim material: a Constituição só permite a violação do sigilo da correspondência e das telecomunicações em processo-crime — o que exclui em absoluto os inquéritos parlamentares, que visam apurar responsabilidades de natureza política e não investigam e punem crimes, função do Estado constitucionalmente atribuída ao Poder Judicial.
Aliás, os que defendem que as CPIs, pelo argumento invocado, podem utilizar escutas, também deveriam defender que elas podem ordenar escutas — o que é manifestamente absurdo e claramente repugna.
O Estado de Direito democrático assenta na limitação dos poderes públicos face a uma incompressível e inultrapassável esfera de privacidade dos cidadãos, quem quer que sejam. Há já, infelizmente, demasiadas brechas neste princípio e é bom que não seja o Parlamento a dar facilidades na matéria, antes pelo contrário deve zelar no sentido oposto, em defesa dos direitos dos cidadãos e das cidadãs.
Os artigos citados da Constituição constam dela desde a sua redacção inicial e não sofreram substancial alteração. Como Deputado Constituinte, congratulo-me com o continuado reconhecimento da profunda sabedoria de tais preceitos.
Acresce ainda — do que já não me lembrava, mas fui verificar no Diário das Sessões de 1975 — terem sido esses preceitos aprovados em sessão plenária da Assembleia Constituinte sem discussão — o que evidencia o consenso unânime, quanto a um deles com uma única abstenção, previsível, que sobre eles se gerou.
E como se o já referido não bastasse para justificar o meu apego a princípios tão fundamentais, os preceitos em causa foram transcritos, palavra por palavra, do Projecto de Constituição apresentado pelo PPD, por a comissão competente que estudava a matéria de direitos, liberdades e garantias, ter considerado ser essa, em confronto com a de outros projectos de outros partidos, a formulação mais completa e perfeita, digna de figurar na Lei Fundamental da nova democracia portuguesa.
Os preceitos da Constituição, enquanto constam do seu texto, têm igual valor jurídico. Mas o que toca aos direitos, liberdades e garantias é reforçado por instrumentos internacionais a que Portugal se encontra vinculado, nomeadamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, do Conselho da Europa, esta última com peculiar garantia jurisdicional.
Mais importante ainda é que em tais direitos, liberdades e garantias se protege o núcleo duro da dignidade de cada pessoa humana, que é anterior ao Estado e a ele se impõe, exigindo integral respeito da parte do Poder, que assim fica limitado em termos absolutos.
Com tantos e tão fortes argumentos, quanto à questão das escutas, a CPI procedeu bem! E eu pude terminar a missão com o melhor prémio: — de consciência tranquila!
Autor: João Bosco Mota Amaral
[Intervenção proferida ontem na Assembleia da República enquanto presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito ao negócio PT/TVI]
Desde o início deixei claro que exerceria a função com total rigor e independência e por isso me abstive em todas as votações da CPI, incluindo a do relatório final.
Por consenso unânime foram adoptadas desde o início regras e procedimentos, nomeadamente quanto a limites dos tempos de intervenção, que muito ajudaram a conduzir com eficácia os trabalhos da CPI.
Repito aqui formalmente o meu louvor e agradecimento às Senhoras Deputadas e aos Senhores Deputados que fizeram parte da CPI, tanto efectivos como suplentes, em especial os membros da Mesa, o Relator da Comissão e os que tiveram o encargo de Coordenadores de Grupo, pelo seu exemplar empenhamento no cumprimento do mandato recebido. O mesmo digo dos funcionários do Parlamento destacados para apoiar a actividade da CPI, tal como dos representantes dos órgãos de comunicação social, que asseguraram a divulgação dos nossos trabalhos à opinião pública.
Realizou a CPI, dentro da estreita margem de tempo fixada para o seu mandato, prolongada com calculada parcimónia, um número apreciável de diligências instrutórias, incluindo a inquirição de cerca de duas dezenas de pessoas consideradas como testemunhas válidas dos factos em análise.
Com uma única excepção, que deu origem ao procedimento legalmente previsto, todas as entidades solicitadas se prestaram a colaborar com a CPI, cumprindo assim o seu respectivo dever cívico.
A CPI, por iniciativa potestativa de alguns dos seus membros, requereu às entidades judiciais competentes peças de processos criminais em curso, no entendimento, de uma parte e outra partilhado, que o segredo de justiça, nos termos da lei aplicável, não é oponível às comissões parlamentares de inquérito.
Entendeu, porém, a CPI, por iniciativa minha, reforçada por deliberação da Mesa, obtida por maioria, com uma abstenção — deliberação essa recorrível, nos termos gerais do nosso Regimento, mas de que ninguém recorreu, o que deve ser entendido como aceitação, segundo os princípios gerais de direito — não utilizar directamente o conteúdo dos resumos de escutas telefónicas incluídos na documentação recebida do Tribunal de Comarca do Baixo Vouga, nem nos trabalhos da CPI nem no seu relatório final.
Acerca desta matéria gerou-se alguma confusão, que tentei esclarecer, nem sempre com sucesso. A ninguém foi proibido a acesso às famosas escutas, mas apenas a utilização directa do seu conteúdo pela CPI. Expressamente foi dito que o conhecimento das mesmas poderia mesmo sugerir novas diligências instrutórias…
O que me pareceu — e à CPI — de todo inaceitável foi a utilização de escutas num procedimento parlamentar, que não tem, obviamente, a natureza de investigação criminal.
Na verdade, a Constituição declara invioláveis “o domicílio e o sigilo da correspondência e outros meios de comunicação” e proíbe expressamente “toda a ingerência das entidades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal” (Artigo 34º, 1 e 4).
Por outro lado, a Constituição considera nulas todas as provas obtidas mediante “abusiva intromissão na correspondência ou nas telecomunicações”, aplicando-lhes o mesmo regime que determina para as provas obtidas mediante “tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa” (artigo 32º, 8).
Aduzem alguns o argumento seguinte: dispondo a Constituição que as CPIs “gozam de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” (Artigo 178º, 5), está-lhes facultado o uso de escutas telefónicas.
A questão, porém, a meu ver, não é orgânica mas sim material: a Constituição só permite a violação do sigilo da correspondência e das telecomunicações em processo-crime — o que exclui em absoluto os inquéritos parlamentares, que visam apurar responsabilidades de natureza política e não investigam e punem crimes, função do Estado constitucionalmente atribuída ao Poder Judicial.
Aliás, os que defendem que as CPIs, pelo argumento invocado, podem utilizar escutas, também deveriam defender que elas podem ordenar escutas — o que é manifestamente absurdo e claramente repugna.
O Estado de Direito democrático assenta na limitação dos poderes públicos face a uma incompressível e inultrapassável esfera de privacidade dos cidadãos, quem quer que sejam. Há já, infelizmente, demasiadas brechas neste princípio e é bom que não seja o Parlamento a dar facilidades na matéria, antes pelo contrário deve zelar no sentido oposto, em defesa dos direitos dos cidadãos e das cidadãs.
Os artigos citados da Constituição constam dela desde a sua redacção inicial e não sofreram substancial alteração. Como Deputado Constituinte, congratulo-me com o continuado reconhecimento da profunda sabedoria de tais preceitos.
Acresce ainda — do que já não me lembrava, mas fui verificar no Diário das Sessões de 1975 — terem sido esses preceitos aprovados em sessão plenária da Assembleia Constituinte sem discussão — o que evidencia o consenso unânime, quanto a um deles com uma única abstenção, previsível, que sobre eles se gerou.
E como se o já referido não bastasse para justificar o meu apego a princípios tão fundamentais, os preceitos em causa foram transcritos, palavra por palavra, do Projecto de Constituição apresentado pelo PPD, por a comissão competente que estudava a matéria de direitos, liberdades e garantias, ter considerado ser essa, em confronto com a de outros projectos de outros partidos, a formulação mais completa e perfeita, digna de figurar na Lei Fundamental da nova democracia portuguesa.
Os preceitos da Constituição, enquanto constam do seu texto, têm igual valor jurídico. Mas o que toca aos direitos, liberdades e garantias é reforçado por instrumentos internacionais a que Portugal se encontra vinculado, nomeadamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, do Conselho da Europa, esta última com peculiar garantia jurisdicional.
Mais importante ainda é que em tais direitos, liberdades e garantias se protege o núcleo duro da dignidade de cada pessoa humana, que é anterior ao Estado e a ele se impõe, exigindo integral respeito da parte do Poder, que assim fica limitado em termos absolutos.
Com tantos e tão fortes argumentos, quanto à questão das escutas, a CPI procedeu bem! E eu pude terminar a missão com o melhor prémio: — de consciência tranquila!
Autor: João Bosco Mota Amaral
[Intervenção proferida ontem na Assembleia da República enquanto presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito ao negócio PT/TVI]
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