6 de abril de 2006

O Roupão

"Estávamos mesmo tão acordados que a posição deitada se tornou fatigante e acabámos por nos sentarmos, bem protegidos pelos cobertores, com os queixos enterrados entre os joelhos erguidos, como se as nossas coxas fossem botijas de calor. Sentíamo-nos perfeitamente bem ali no quente, tanto mais que lá fora, e no próprio quarto, sem aquecimento, reinava um frio cortante. A este respeito acrescento que para se gozar plenamente o calor é indispensável ter uma parte do corpo exposta ao frio; porque neste mundo a única medida de valores é a que resulta do contraste. Em si, nada existe. Se uma pessoa se vangloria de um conforto pleno e perene, isto é o mesmo que afirmar que não se encontra mais em condições de avaliar o que é o conforto. Mas se, à semelhança de Queequeg e de mim próprio, uma pessoa se encontra na cama com a ponta do nariz e o alto da cabeça ligeiramente friorentos, então, na verdade, essa pessoa pode afirmar com toda a consciência que sente o mais delicioso e inequívoco calor. Por este motivo um quarto com cama nunca devia dispor de aquecimento, que é um dos luxuosos desconfortos dos ricos. Porque a suprema delícia é não ter, entre o nosso corpo e o frio exterior, outra coisa além dos cobertores. Então podemos dizer que somos uma fonte de calor incrustada no cerne de um cristal do Ártico."

Ismael (Herman Melville), Moby Dick

1 comentário:

Anónimo disse...

Este texto (excerto) é absolutamente fantástico!