11 de setembro de 2006

Tabacaria (excertos)

[Salvador Dali]
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

(…)

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,

(...)

Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim... Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(…)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(…)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

(…)
Álvaro de Campos

7 comentários:

Anónimo disse...

Tirou-me o "comentário da boca"...

Anónimo disse...

"Em que hei de pensar? Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!"... Tente ser o que sente!... Nada é mais confortante e sereno que sermos o que sentimos, fazermos e agirmos conforme sentimos e no que sentimos e para nos fazer sentir... É humano, é da nossa natureza...é o natural! Toda a nossa vivência, existência, se pauta pelo que sentimos. Movemo-nos conforme sentimos...somos genuínos e honestos agindo como sentimos...(bem, pelo menos connosco próprios, porque necessariamente se levantará uma questão de egoísmo se exclusivamente agirmos como sentimos, não considerando o que podemos fazer sentir no outro, mas isso...por ora não creio ser o mais importante).

Primeiro sinta...depois pense...verá que agirá crendo no que faz.

Anónimo disse...

Memória

"Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão."


Carlos Drummond de Andrade

Anónimo disse...

De facto é de nossa natureza sentirmos, e agirmos de acordo com esse sentimento...
Uns chamam a isso "impulso", outros "seguir o coração"!

E seguir o nosso coração traz-nos, por regra, conforto... serenidade... para nós mesmos. E não só! Acredito que agindo de acordo com o que sentimos beneficia ambos e, só assim, encontramos tal serenidade.

Agora, não será a consciência tranquila de sermos genuínos e honestos com o nosso coração que nos liberta da "obrigação" de pensarmos no outro, de não magoarmos o outro.
Permita-me discordar, mas é algo que deve ser - se não o mais, pelo menos, muito - importante!

Creio que uma coisa não impede a outra. E poderemos sempre encontrar um equilíbrio saudável entre o muito que sentimos e o tanto que pensamos...
O sacrificado não deve ser o sentimento, mas tudo aquilo que nos tolda o pensamento... decidindo e optando.

Só assim, agimos querendo e crendo no que fazemos.

Anónimo disse...

...Não creio que esteja a discordar. Bem pelo contrário, compreendeu, perfeitamente, a ideia que se pretendia transmitir...tanto assim que o seu escrito o complementa...e na perfeição diga-se.

Anónimo disse...

... :)

MBSilva disse...

As qualidades continua a tê-las! Não espere que lhe abram a porta, encha o peito de ar e, se preciso, arrombe!

Reflectir é bom, mas liberte-se desse marasmo de pensamentos que só o conseguem manter nessa espiral a descer!

Nãe é este, nem aquele... é... quem é!
E quem é?, pergunta. Poderia dizer-lhe (como eu, outros)... mas creio que deverá ser um (re)encontro pessoal! Seu... consigo!

[Nesse dia, espero ser convidada e ter privilégio de assistir a esse (re)encontro! EU sei que acontecerá! Quero e acredito!]